As várias vidas de Inês Etienne Romeu
No dia 21 de dezembro de 2009 a grande imprensa noticiava: Dilma aparece pela primeira vez sem peruca. Era o dia do lançamento do 3° Programa Nacional de Direitos Humanos, que lançou as sementes para a futura instalação da Comissão Nacional da Verdade. Neste mesmo evento, Lula resolveu lançar sua sucessora: “Se alguém prendeu a Dilma, se alguém torturou a Dilma, achando que ali tinha acabado a luta dela, eu digo que ela é hoje uma possível candidata à Presidência da república deste país”.
Em meio às rememorações, a ministra emocionou-se ao discursar homenageando sua amiga Inês Etienne Romeu, que acabara de receber o prêmio Direitos Humanos.
Àquela altura, Inês já balbuciava algumas palavras e se locomovia com dificuldade, resultado de um “acidente” ainda não esclarecido, que sofrera em 2003, quando foi encontrada dentro de sua casa, caída em meio a uma poça de sangue, com traumatismo cranioencefálico. Não havia sinais de arrombamento na porta ou de roubo de objetos.
Inês foi uma mulher admirável, que viveu várias vidas em uma: foi Alda, Isabel, Leda, Nadia, Olga, Tânia. Foi dona de bar, comandante de organização de guerrilha, única sobrevivente de um centro clandestino de detenção.
Militância nos anos de chumbo
Inês nasceu em Pouso Alegre, em 22 de agosto de 1942. Na juventude foi para Belo Horizonte para concluir os estudos. Fez sociologia e política na Universidade Federal de Minas Gerais e depois matriculou-se no curso de História na mesma instituição. Com a entrada na clandestinidade, em 1969, foi obrigada a trancar a matrícula.
No início dos anos 1960 iniciou sua militância, que começou pelo Partido Comunista, no Sindicato dos Bancários, passou pela organização Política Operária (POLOP), até a radicalização e engajamento em organizações armadas: Comandos de Libertação Nacional, Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares e a Vanguarda Popular Revolucionária.
Pouco antes do golpe, junto com outros amigos, foi dona do Bucheco, um bar que ocupou o imaginário da época. O nome foi uma homenagem a Che Guevara e o lugar servia para arrecadar fundos e militantes para a Política Operária. Era um ambiente libertário, onde mulheres podiam beber sem serem incomodadas. Quando o bar fechava, não raras vezes, a jogatina começava.
Em uma das noites, os amigos mais próximos resolveram jogar strip-poker. Inês perdeu e tirou a roupa. Um dos comandantes da organização e sócio do bar, Carlos Alberto Soares, o Beto, ao saber do episódio ameaçou expulsar todos os envolvidos da organização. No fim tudo se ajeitou, após uma auto-crítica.
O bar fechou nos primeiros dias após o golpe em março de 1964.
Uma mulher no comando
Os momentos que podem ser considerados mais marcantes da trajetória da militância clandestina de Inês se deram nos anos 1970- 1971, quando ela alcançou o posto de comandante nacional da VPR, junto com Carlos Lamarca e Herbert Daniel, em um período onde poucas mulheres alcançavam este posto.
Obviamente, ela não chegou até ali sem boas referências: Anteriormente esteve envolvida no assalto ao cofre de Ana Benchimol, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, considerada a maior ação da guerrilha urbana brasileira, onde conseguiram quase 3 milhões de dólares, em 1969. Ela ficou responsável por cuidar e distribuir parte do dinheiro.
À frente da VPR, ela esteve na organização da captura de dois embaixadores: o alemão, que resultou na soltura e banimento de 40 presos políticos e no do suíço, que resultou na libertação e banimento de outros 70 companheiros.
O inferno
Em março de 1971, já desligada da organização, mas cumprindo compromissos previamente combinados, foi sequestrada após aparecer em um encontro com um companheiro de organização que havia entregado para a repressão tal atividade. Desde esse dia, começou o inferno de Inês Etienne, presa clandestinamente em São Paulo, levada para o Rio de Janeiro e para Petrópolis, em um centro de tortura.
Ela foi barbaramente torturada, humilhada e estuprada. Tentou suicídio quatro vezes no período de cinco meses que esteve na casa.
Tentaram convencê-la a trabalhar para a repressão como agente infiltrada, gravando depoimentos com informações falsas e ameaçando prender uma de suas irmãs. Em razão deste “acordo”, foi libertada.
Anos mais tarde, um general de alta patente afirmou que ela representou “um dos grandes fracassos de cooptação do serviço de inteligência brasileiro, ligados ao Exército, que tentaram “virá-la” (convencê-la a colaborar com o aparelho de segurança)”. De acordo com o militar, a ideia de “conquistá-la ideologicamente” surgiu da constatação da sua importância dentro da VPR, mas este trabalho não foi exitoso.
Em novembro de 1971, foi presa e condenada à prisão perpétua. Na prisão ela foi isolada por outras presas, estreitando laços somente com as que dividiram cela. Depois da anistia, em agosto de 1979, foi a ultima presa política a ser libertada.
Memória, resiliência, luta
O documento que ficou conhecido como “O relatório Inês” foi escrito em setembro de 1971, após sua saída da Casa de Petrópolis. Este documento, que foi publicado pelo semanário O Pasquim, em 1981, é de grande importância histórica, pois relata as entranhas da repressão.
Dona de uma memória invejável, ela guardou o número do telefone que ouviu na casa e demais nomes e apelidos dos torturadores e colaboradores que ali passaram e, mais, os nomes de cerca de uma dezena de desaparecidos políticos. Com estes dados em mãos, ficou mais fácil chegar a estas pessoas.
Neste mesmo ano de 1981 ela começou a sua busca pela Casa de Petrópolis e por alguns envolvidos diretamente em sua tortura.
Em fevereiro, junto a uma equipe da imprensa e alguns políticos, ela foi atrás de Mario Lodders, proprietário da casa. O encontro foi registrado e veiculado no Jornal Nacional na mesma noite. Era a primeira vez que se noticiava algo referente à repressão da ditadura.
No dia seguinte, ela foi atrás do psicanalista Amílcar Lobo, responsável por sua medicação na casa. O encontro foi registrado pela revista Isto É. Após esta revelação, outros ex-presos políticos passaram a reconhecer e denunciar Lobo.
Toda essa repercussão causou incômodo aos militares, que lançaram notas na imprensa chamando de revanchismo este movimento todo causado pelo caso Inês e dizendo que isso poderia comprometer a anistia e a transição.
Sobrevivente
Inês terminou o curso de História na Universidade Federal do Ceará. Após a conclusão do curso, ela foi para São Paulo, onde tornou-se diretora do Arquivo Público do Estado, participou da criação do Sistema de Arquivos do Estado e esteve na constituição da Associação dos Arquivistas de São Paulo.
Entre os anos de 2014 e 2016 o nome de Inês Etienne voltou a ter mais visibilidade, dada a sua participação na Comissão Nacional da Verdade, reconhecendo torturadores e confirmando informações que dera ainda nos anos 1970, e por meio das várias homenagens que recebeu postumamente.
Ela morreu em 2015, em Niterói, em decorrência de um infarto.
Não houve punição a nenhum dos algozes de Inês Etienne, em razão de nossa Lei da Anistia e da Comissão Nacional da Verdade não possuir caráter punitivo. Mas, sem dúvida, graças a sua coragem, uma infeliz página da nossa história veio à tona e algumas famílias tiveram o alento de saber o que aconteceu com seus entes.
Inês é uma das sínteses de uma geração cheia de ideais e inconformada com injustiças.
Historiadora. Admiradora e pesquisadora de mulheres transgressoras.